2/25/2010

Criada.





Fui criada numa casa do campo com o rio ao longe e sempre presente na ideia as cheias de inverno, a água cor-de-lama a ameaçar tocar os pés, os meus, os pés da casa, tudo o que me sustentava. A minha mãe era uma velha senhora, daquelas que fiam à janela durante as horas do sol, falava em magnólias por vezes, a minha infância foi passada entre idas ao rio e esfoladelas nas cascas proeminentes das árvores. O céu era um azul distante, eu cheirava as estrelas com as costas encostadas ao som da erva fresca, depois corria, sempre corri. A casa ficou cada vez mais velha, a minha mãe cada vez mais velha, as magnólias morreram de tão velhas, nesse dia a minha mãe deixou de fiar, a janela fechou-se e em casa o sol nunca mais quis entrar, a minha mãe morreu e eu sem saber fiquei com um amor que me magoa o peito de tão grande. Continuava a correr, não me esfolava tanta vez, não ouvia a erva todos os dias, quando deixei de procurar as estrelas no céu encontrei-as nos teus olhos, em apenas duas o brilho de tantas. Não sei se recordas o dia em que pescavas no rio e eu escondida atrás das árvores, atrás das figuras que durante muitos anos foram para mim as minhas gentes, além da minha mãe agora convertida em árvore também. Lembro-me de te olhar as calças arregaçadas, a cana na mão e em ti toda a alegria de um peixe a teu lado, a mostrar o poder dos homens sobre a natureza. Foi então, num instante que não esqueço, que me olhaste, sorriste, falaste ainda que não tenha ouvido o som da tua voz e essa foi a nossa melhor conversa. Depois de tudo isso, de uma tarde que foram anos, ensinaste-me a falar, a estar sentada, ensinaste-me a calar, ensinaste-me as respostas mecânicas de uma senhora bem-comportada, ensinaste-me a ser o prolongamento do que a tua vontade desejava mas a tua vontade desejava tanto. Passaram-se anos e com eles fui rolando nas tuas mãos e nas mãos daqueles a quem me entregavas, nas tuas mãos chegava depois o valor pouco do meu corpo, o valor pouco do meu sexo arrombado por quem querias, por quem queres. Não sei se te odeio, mas odeio a morte das magnólias da minha mãe, odeio não poder odiar-me a mim com mais força, mais ainda, como se isso fosse possível. Na televisão as cheias, não parou de chover desde que te olhei no rio, devia ter percebido algo a partir disso. Mas não.

Fotografia - desconhecido

0 Comentários:

 
 
Copyright © Palavras minhas.
Blogger Theme by BloggerThemes Design by Diovo.com