eu ninguém
O som do comboio percebe-se quase a dois minutos e vinte e dois segundos de distância, magia da velocidade do som, depois é só esperar, as luzes avizinham-se ao longe, chega, pára, depois eu olho, um minuto exacto, as portas fecham-se e perco a viagem. Depois torno a ouvir, dois minutos e vinte e dois segundos de espera, tudo de novo outra vez. Vezes e vezes sem conta e eu só a olhar, a ver-me na estrutura metálica dos braços e pernas do comboio, a perder todos os comboios, a perder-me a mim. Eu ninguém.
eu ninguém comigo só
posso ser
Os dias comigo começam cedo, o levantar, o andar, o olhar-me. O espelho na casa de banho, no quarto, no hall. Quem sou eu? Alguém mais bela do que eu? Os sapatos de cristal apertam-me os pés. Saio,
ainda perco o comboio.
Depois o cigarro, as unhas vermelhas, as ruas, o comboio e eu, mas nem sempre
travesti de quem quiser
manequim de bazar
ou rainha do lar
As mulheres na rua a estenderem os lençóis ao sol, manto de brancos, aí vem o rei, longa vida ao rei, e eu a imaginar-me rainha, os meus lábios vermelhos, as unhas, as minhas maçãs do rosto rosadas a destoarem da face branca, o olhar para ti meu rei, o não sorrires, o acenar fingido, tanta riqueza e a pobreza por dentro. As vizinhas com os lençóis, a chamarem-me nomes, a atiçarem-se contra a rainha que sou, a chamarem-me travesti, manequim, mas sou rainha e não ligo. O comboio, dois minutos e vinte e dois segundos.
E as vizinhas ainda
madame butterfly
barbie suzie dolly polly pocket
E eu
tudo bem
mas eu posso ser também
emanuelle
lady miss mademoiselle
num harém meretriz
ou apenas actriz
o espelho me diz
gueixa vénus eva dama virgem mãe
é que eu sei
o que eu sou e o que nao sou
mas é claro
o que eu for eu sou
sem ninguém
só o que eu tenho a saber
é quem de nós cem
hoje eu vou ser
sei la sei la
sei la sei la
sei la sei la
sei la sei la
O comboio, conto oito. Atiro-me, aqui morreu a rainha.
Música - Clã
Fotografia - Desconhecido
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