6/01/2010

Pranto





Tinham sido quatro horas de espera naquela sala exígua das urgências do hospital. Era de noite, uma noite entrecortada pelas luzes azuis e amarelas das ambulâncias, pelo silêncio duro das vozes mudas das dores. Eram poucas as crianças, muitos homens de meia idade, muitas mulheres também, estranhamente poucos velhos. A dor aguenta-se melhor com a idade, ou então suporta-se, disse alguém sentado numa cadeira três filas atrás dele. Foi depois desta frase que lhe ecoou no cérebro, rodando no seu entendimento, fervilhando-lhe o sangue que ouviu chamar o seu nome. Gabinete 3. Depois as perguntas habituais, o que o traz por cá, a descrição das dores mudas, a história do coração apertado, das vozes nos pulmões, o bater descompassado de há meses, depois o bater insonoro do coração. A descrição foi realista, o médico olhou para o homem como se o olhasse por dentro, o frio do estetoscópio no peito e depois o escutar das palavras nos pulmões. Depois de tudo isto o silêncio. O médico levanta-se, anda pelo gabinete. Desenha no chão como se este fosse feito de ardósia e os pés grandes paus de giz. O médico pensou nas enciclopédias que tinha lido, equacionou diagnósticos referenciais. Nunca na vida tinha tido qualquer espécie de contacto com algo assim. Estranhamente, quando me lembrei de olhar o doente este estava calmo, não olhava o médico e como é certo não me conseguia ver a mim. Não sei com exactidão o tempo que passou nesse vai vem do médico, retenho apenas o som irritante do giz a roçar a ardósia a servir de chão. O doente respirava fundo. O médico respirava fundo. Eu não respirava. É então que com o peito repleto de ar o médico disse o impensável, o diagnóstico exacto de uma doença que se julgava extirpada, você tem pranto no peito. O homem, o doente, aquele que agora sabia transportar o maior dos prantos do mundo nem sequer pestanejou, olhava o chão escrito pelos pés do médico e disse

você desenhou uma rosa sem pétalas e isso também não é um bom sinal.






Fotografia - Autor desconhecido.

5 Comentários:

Isa GT disse...

Pranto, às vezes sofro disso e dá crises, umas maiores que outras, não será fatal, basta aprender a conviver com essa doença crónica.

Já agora, poderei roubar-lhe a foto para usar como paliativo da minha doença?
Depois vai ver que espécie de paliativo consigo fazer ;)

Edgar Semedo disse...

Olá Isa,

sofre então de uma doença rara. Pode usar a imagem à vontade, com a correcção que não é minha, retirei da Internet e não consegui identificar o autor.

Bom resto de tarde,

E.

Isa GT disse...

Mas como não tive o trabalho de a tirar da net, tinha que lha pedir e desde já, obrigada :)

Nós disse...

...começo a pensar que também sofro dessa doença...mas penso que a cura é tão fácil, ou não, porque nem sempre a encontramos ou, simplesmente, a deixamos fugir...a tão "conhecida" Felicidade!

Edgar Semedo disse...

A cura não é fácil, o fado instala-se, depois toma o corpo como a sua casa.

Felicidade nessa procura de cura, a todos "Nós".

Tudo de bom.

 
 
Copyright © Palavras minhas.
Blogger Theme by BloggerThemes Design by Diovo.com