3/04/2011

A bola de multidão.



Vestias um vestido preto, cintado, leve. Na tua mente ecoavam as últimas palavras da música que tínhamos despido horas antes, abraçados pelo gelo das palavras e dos gestos repetidos. Eu tinha umas calças azuis e o peito coberto por uma camisa amarela, ouro sobre azul disseste. Davas-me a mão, descemos assim as escadas do hotel como se fossemos duas crianças amedrontadas. O ar era quente, assim como o vermelho das tuas faces. As mãos estavam frias, apesar de juntas. Sorrias e o teu cabelo levitava no embalo da descida, como se fosse beijado pelo ar e se sustivesse imóvel, por instantes, como se os fios do teu cabelo fossem nuvens douradas que alegravam os dias de quem espera. Saímos do hotel em direcção à maior praça da vila, enquanto andávamos as pessoas seguiam-nos e falavam coisas. Não prestei atenção ao que diziam, penso que tu também não. Quando te olhava e tu reparavas que eu te olhava sorrias e olhavas-me também, mas quando eu te olhava e tu não reparavas dava por ti a cantar numa língua que me era estranha. As pessoas seguiam-nos os passos, nenhuma se atreveu a colocar-se à nossa frente, seguiam sempre atrás; as vozes iam aumentado o volume e parecia que todo o barulho do mundo nos seguia como se fosse uma bola que nos podia esmagar a todo o instante. Não tivemos medo, estávamos de mãos dadas e todos os medos se afastam desse poder que é a perfeição de duas mãos juntas. Quando chegamos à praça, parámos e depois dançámos abraçados. À nossa volta uma roda gigante de pessoas paradas, quietas e geladas como estátuas, imunes à luz clara e brilhante daquele final de tarde, imunes à música que saía do nosso corpo e que soava pela cidade e pelos campos que beijavam a cidade eternamente. Dançamos durante horas, durante o que julgo ser muito tempo, dançámos até sermos interrompidos pela voz de uma criança que não cheguei a ver 

é isso o amor, mãe? 

não sei Miguel, não sei 

e ninguém que estava naquela roda o sabia, nem nós, nem eu, nem tu. Até hoje. Não sei qual a razão de o saber. Hoje sonhei com aquele dia como se o vivesse outra vez, a minha mão está fria, aqui neste quarto ecoa a tua música, e neste papel surgiram todas as notas das quais é feito o teu cheiro e depois percebi, percebi tudo. Percebi de uma forma que não consigo explicar em palavras, pelo menos com as minhas palavras, as minhas palavras e as palavras do mundo, as palavras das pessoas da roda que eram todas as pessoas da cidade. Não são essas as palavras.

2 Comentários:

Dan Arsky Lombardi disse...

Cores, aromas, sabores e amores.
Podemos tentar descrevê-los, através desses caracteres malditos e limitantes.
Mas para absorvê-los verdadeiramente é preciso senti-los.


Descritiva impressionante do texto, está usando muito bem as palavras e a usar a segunda pessoa ao invés da terceira deu um toque refinado. Parabéns.

Edgar Semedo disse...

Olá Dan Arsky Lombardi,

tens razão naquilo que afirmas. Obrigado pelos elogios, o teu blogue também é daqueles que visito habitualmente e tens post que me surpreendem muito.

Tudo de bom,

Edgar Semedo

 
 
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