6/19/2009

dezassete,entre as quatro e as seis



Era sempre entre as quatro e as seis. A senhora dispunha em cima da mesa da camilha todos os instrumentos necessários, verniz, limas e alicates, uns maiores e outros menores, como os corações à sua volta, acutilantes, superfícies ásperas. Lembro somente das horas da senhora, entre as quatro e as seis, os cheiros, vernizes e acetonas, delicadas, verniz de cor vermelha, o cheiro da superfície áspera da lima. Entre as quatro e as seis a senhora pintava as unhas, só pintava as unhas de uma mão, a esquerda, só a esquerda, a esquerda do coração, o verniz era sempre o mesmo, vermelho sangue, como o amor que entre as quatro e as seis sentia, amor de anos, dezassete, lembrava sempre a idade, o beijo e o sexo dos dezassete, amor, beijo e sexo de verniz, verniz vermelho, como o verniz dos sapatos que usou, à beira rio, no dia em que o vermelho cor de sangue lhe escorreu entre as pernas, as pernas todas, as duas. Gracejo com o som do verniz a escorrer-lhe no pincel, o toque deste era para ela como beijos, beijos de dezassete entre as quatro e as seis, beijos que recebia e dava e se dava, todos os dias, à janela, sentada, de cotovelos apoioados na camilha. Não podia dizer que era feliz em todas as horas do dia, mas os delirios de duas horas por dia davam-lhe alento, calor, sempre tudo é sobre o calor mesmo quando é mesmo sobre a falta dele. A senhora de unhas de uma mão pintada penteava-se à janela, sentada na cadeira da mesa da camilha, todos os dias, que é como dizer sempre. Depois, fechava os olhos e chorava. As lágrimas da senhora não eram vermelhas, pelo menos ela nunca as viu assim, não se olhava ao espelho também, tinha medo de si, tanto quando dele e dos outros por trás dele, existe sempre alguém por trás, não tinha medo dos dezassete, sim, disso ela não tinha medo. Lembro-me, de ela ter dito, algures entre as quatro e as seis, não ter medo dos dezassete, nem dos sapatos de verniz, nem do sexo arrombado aos dezassete, nem dele, o dos dezassete. A senhora às dez para as seis começava a esquecer-se, começava a apagar-se com as acetonas, às seis estava apagada, apenas o cheiro para a denunciar, sem verniz não chorava, nunca. Às seis e dez ele chegava, os outros dentro dele e por trás dele, ele beijava-a, ela não fechava os olhos e tocava-lhe, só com a mão direita.



foto de Mónica Dias

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