3/17/2010

O coração


Apenas se vê bem com o coração, pois nas horas graves os olhos ficam cegos.
 Antoine de Saint-Exupéry





Vivia na casa de família desde que se conhecia como gente, o arvoredo que engolia a casa era vasto e nele viviam os aromas dos cedros, das folhas de eucalipto que ano após ano ela colocava debaixo do colchão da cama para ser mais fácil reter o ar. Na casa da família haviam apenas duas estações, a estação primeira era onde o sol brilhava por entre as folhas das árvores, a estação segunda era a estação da chuva, dos chás à janela, do quente da lareira. Ela vivia para a casa e para as pessoas da casa, desde sempre. Vivia para o marido, senhor doutor das causas importantes, da criada, coitada com dois filhos doentes, dois empregos, muito trabalho, vivia também muito para a educação das filhas, a lição, o piano, o francês. Escrevia também os seus poemas, relia os seus poemas com a mesma sofreguidão com que os escrevia, gostava de guardar a beleza do mundo, a beleza das pessoas do mundo nos versos dos seus sonetos. Ajudava a criada enquanto ela lhe ajudava também, penteava a filha, escovava o fato do marido, lia histórias antes de adormecer e oferecia chás e tardes de riso à criada. Fazia o bem, ainda que não gostasse que esse bem fazer fosse do conhecimento dos outros. Um dia sentiu-se doente, e o marido


conheço um médico meu amigo.

Ela foi, sozinha, entrou na máquina que a via por dentro, que conhecia os segredos escondidos, os segredos que não eram mais que o bem. Depois o médico, o amigo do senhor doutor seu marido

há um problema.

e os olhos dela bem abertos como se já soubessem, como se nos oráculos do entendimento já conhecessem a frase que vinha a seguir

o seu coração é maior do que a sua caixa torácica consegue suportar.




Fotografia - www.scumdoctor.com/

2 Comentários:

Isa GT disse...

É que paga as favas, sem culpa nenhuma ;-)

Edgar Semedo disse...

Num momento ou outro das nossas vidas temos de pagar pelo que somos, pelo que fazemos.

Obrigado pela visita Isa.

Tudo de bom.

E.

 
 
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