Lembraste quando vivíamos dentro da bola de vidro? Aquela que era cheia de água e neve que caía lentamente sobre nós; sobre nós deitados na cama que estava no centro da bola. Ingénuos, pouco sabíamos do mundo fora da bola, era como se não existisse. Tudo era sombras e formas sem forma cheias de cor. Na bola éramos só nós, a cama, a água e a neve. Nós andávamos na água com uma agilidade pouco comum. A cama estava sempre impecavelmente feita e nós andávamos descalços nos passeios que dávamos em redor da bola, nunca perguntando se o mundo começava ou terminava naquele espaço. Quando me asfixiava no pouco espaço tu fazias nevar e cantavas-me ao ouvido, eu depois tirava a neve da cama e deitava-me contigo. Recitava poemas para as tuas costas. Tu cantavas Piaf e eu sabia que Piaf era a minha princesa e sabia, também, que no meio da cama comandavas a natureza e com voz de rainha fazias nevar e parar de nevar e tudo acontecia como a tua voz tinha ordenado que acontecesse. Depois dormíamos. E foram assim tantos dias da nossa vida. A bola um dia desistiu de nós; ou nós dela. Restou a cama no centro de um quarto, no centro da rua do centro de uma cidade. Curiosamente, nunca mais me deitei nela, nem contigo, e nunca mais vi nevar e tu nunca mais disseste
que comece a nevar
e depois começasse a nevar de verdade a noite toda; a noite toda que havia de ser o tempo em que abraçados recordaríamos a bola de vidro onde morámos um dia e onde tudo acontecia perfeito no centro do mundo que éramos nós os dois.
0 Comentários:
Enviar um comentário