3/24/2011

A poltrona do pai.



As janelas tinham sido meticulosamente fechadas numa dança que a mulher efectuou pela casa. Andava de olhos fechados, e ainda assim acariciava as coisas como se as visse, o cão de loiça, as molduras vazias onde um dia iriam estar as fotografias dos filhos sentados no jardim com o cão a tocar-lhes os pés descalços. Passou a mão pelo casaco preto dos domingos em que o frio se camufla nos raios de sol que ela sente a tocar-lhe a pele despida. Colocou um disco, sentou-se e de olhos bem fechados imaginou uma vida que não era sua, a não ser nesses instantes de sonho que aconteciam na poltrona que tinha pertencido à sua mãe e que era ligeiramente mais baixa que a poltrona que tinha pertencido ao seu pai, senhor da casa e único senhor de todas as coisas que agora lhe pertenciam. Ela não olhava as coisas, preferia imaginá-las dando outro sentido, outra figura, outras cores, aos contornos que o tacto lhe fornecia através das pontas dos dedos onde moravam umas unhas impecavelmente cortadas e pintadas de vermelho escarlate, todos os dias. Dos sonhos pouco se sabe, apenas eu, narrador intruso de sonhos, horóscopos inventados e maltratados. Sei que nos sonhos da mulher moram contornos de ombros finos e lábios azulados, moram unhas frágeis e transparentes, risos de brincadeiras e de amor que inflama, mora a imagem de um amor congelado que a mulher guardou e que não acompanhou a biologia do seu corpo. Um amor de menina, numa mente de velha e corpo de velha, rodeado de rugas e marcas rosáceas do cinto do pai cujo corpo abandonou a poltrona, abandonou a casa, anos depois de abandonar o coração da mulher que agora cega sabe que o amor não abandona os corpos pela simples vontade do corpo ou pela simples vontade de quem se senta numa poltrona maior e que pensa que dali consegue comandar o mundo que é cada pessoa.


0 Comentários:

 
 
Copyright © Palavras minhas.
Blogger Theme by BloggerThemes Design by Diovo.com