4/01/2011

O anel



A mesa estava desviada do centro da sala, bem próxima da janela como se espreitasse a vida que corria nas imagens cinzentas a quem alguém havia dado o nome de rua. No resto da casa ecoava o som oco dos sapatos do homem que andava de forma pausada beijando o chão em vez de o tocar realmente. Sobre a mesa uma toalha de linho decorada com flores azuis a ponto cadeia, onde o homem veio a colocar depois duas chávenas de chá. Sentou-se; sentou-se na cadeira que ficava em frente à janela. Verteu o chá nas duas chávenas. Serviu o açúcar e demorou-se no gesto de fazer circular a colher no líquido amarelado que tinha cheiro de camomila e tílias a combinar com o amarelo e azul das chávenas. Num gesto que me pareceu frequente, dada a rapidez do movimento, retirou o anel da mão esquerda e fê-lo mergulhar no líquido, alterando o som da música na chávena ao qual se juntou o som do metal a abraçar a porcelana. Pousou a colher. Nesse entretanto, falou da casa, das coisas da casa, das flores que nasciam no jardim mais rápido que em anos anteriores, falou da roupa engomada em cima da cama e da morte do gato e da saudade que lhe deixou a morte do gato, falou da morte e da vontade de morrer e de encontrar na morte quem se deixa de ver em vida. Bebeu um golo de chá, e depois continuou a falar dos filhos, do frio da manhã, do tremor das pernas que aumentava na proporção das horas do dia, falou da televisão e das coisas que acontecem na televisão por acontecerem no mundo. Demorou-se na conversa. Bebeu o chá todo. No fim, meteu o anel debaixo da língua sentindo o frio do metal a entrar-lhe no corpo, a gelar-lhe o sangue que circula por todo o lado sem ir a lugar algum a não ser ao coração. Depois disse, como se falasse a um fantasma, ou a quem existe sem ser corpo e sem ser fantasma, o amor não morre com a morte e eu amo-te todos os dias. No fim retirou a mesa, mas antes perguntou não bebes o chá? Na ausência da resposta levantou a mesa e o som oco dos sapatos fez-se soar, mais uma vez, pela casa toda.

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