4/21/2011

O corte de cabelo. As coisas tristes. Os dois.



Tudo fará sentido, repetia como uma ladainha encantada. Estava sentada e o barulho metálico das tesouras trazia-lhe à mente imagens dos dias, uma atrás da outra, um atrás do outro. O cheiro das tintas para riscar os cabelos tinha-se tornado intenso. Não longe de si, restolhava o barulho do ar saído de bocas de plástico que iam colocando em ordem os fios de cabelo da velha triste que a olhava de quando em vez pelo canto do olho. Iria valer a pena, mesmo que no final do dia pensasse o contrário, ela sabia que tudo acontece por uma razão e o destino das coisas bem fadado ou mal fadado justificava todas as acções, ou todas as palavras ditas ou não ditas, ou que é dito sem se dizer realmente. Saiu daquela caverna eram cinco horas. O dia era cinzento e todas as pessoas pareciam tristes, o céu fechava-se parecendo não existir. Ela não sabia se tinha coração. Caminhou até casa, correndo as ruas que formavam a pequena aldeia uma por uma. Demorava-se. Abriu a porta de casa e num suspiro beijou todas as coisas que faziam parte de si. Vestiu-se. Colocou um fio de cobre que pendia um coração sobre o peito aberto como se mostrasse o sangue e a carne que está dentro do corpo. Esperou. Ele chegou passado um par de horas. Entrou. Pousou a pasta. Respirou. Sentou-se ao lado dela e deitou-se no seu colo. Sorriram. Ela falou-lhe do dia e ele disse fica-te bem. Ela não sorriu e olhou para o lado. Olhou para o lado como se o mundo deixasse de fazer sentido, como se o sofrimento que mora em si como habitáculo das coisas tristes a fechasse num mundo em que a ideia de fuga a assustava tanto como a ideia de ficar. Ele não notou. Assim como não notou que ela havia cortado rente a madeixa de cabelo que ele enrolava enquanto a beijava, a madeixa de cabelo que deixara de fazer parte do corpo dela para fazer parte das manias dele que ela tanto adorava. Por isso a tristeza dela, ou a morte dos dois. A carne exposta. Ela sem coração. Ele também. Ela sempre esperou que ele dissesse não tinhas o direito, o teu cabelo também é meu e faz parte de mim; e ela queria ter chorado primeiro porque sim e depois porque sabia porque sim. Mas ele não perguntou e ela conseguiu mentalmente equacionar todas as coisas erradas que uma por uma aniquilaram todas as coisas certas. Para sempre.


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