5/07/2011

A ópera



Era tarde. Tarde demais para quem já não espera. O homem fumava cigarros acendendo uns na ponta dos outros. Não era por vício. Era prazer, talvez o último na vida gasta. O ar andava em círculos na sala. De um bloco de plástico piscava um ponto vermelho, como uma gota de sangue seco mas rúbeo e intermitente. Demorou-se a encontrar a pequena luz. Carregou no botão como quem dá uma sentença, a última palavra depois de todas as outras mas que muda o sentido da história. Ele era decidido, mas tremia. Notavam-se pequenas rugas vincadas nos nós dos dedos. Dentro da máquina ouviam-se barulhos de violinos e uma voz distante que depois ecoou pela sala

tu não sabes. Mas estou com o Francisco. Comprou-me flores na rua. Duas flores apenas. Uma rosa e um lírio. Cheirei-as enquanto ele me elogiava o perfume e me ajeitava o casaco nas costas. Depois dançou comigo. Ali. No meio da rua onde as pessoas passavam apressadas e não olhavam. Parei de dançar quando reparei que não havia música. O Francisco disse-me que dançávamos ao som do meu coração encantado. Eu que julgava não ter coração. Eu que julgava tanta coisa. Sabes a tua lua continuava lá e dentro da lua a memória do mar que é a tua alma e a tua cara como as ondas são as tuas mãos. Viemos à ópera. Eles cantam e são trágicos. Tal e qual eu. Não sou princesa encantada. Não tenho jeitos de rainha. Vivo, mexendo os braços e as pernas e as mãos como todas as pessoas, falo com normalidade e nem sequer tenho o dom de falar bonito. Nem tu o tens. Mas eu sinto dentro de mim que dizes as palavras certas, mesmo quando não falas, ou mesmo quando dormes. Os teus sonhos devem ser a coisa mais bonita do mundo. Aperfeiçoaste-os. A senhora da ópera canta que é velha. Também eu. Também tu. O Francisco foi à casa de banho. Eu estou aqui sentada na cadeira de veludo e tudo é dourado à minha volta e no palco parece que cantam e contam uma história só para mim. Não sei porque te liguei. Não sei porque continuo a ter a vontade gritante de te oferecer a minha saliva, a minha língua sobre a forma das palavras. Tenho a sensação que digo muito, mas que não digo nada. Estranho. Somos estranhos? Às vezes penso nisso. E tu? Pensas em nós? O Francisco está a chegar, sorriu para mim e acenou-me quando abriu a porta grande do camarote. Será que estás a sorrir para mim agora? Sou trágica. Somos. Mais que a ópera.

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